Embora não haja dados oficiais, continua a existir em Portugal esterilização forçada de adultos com deficiência. Alguns, “legalmente incapacitados”, continuam a ser alvo, “contra sua vontade”, de interrupções da gravidez e de terapias electroconvulsivas. “Um grande número” está, de resto, sujeito a regimes de interdição ou inabilitação “e vê-se privado do exercício de certos direitos, como votar, casar-se, constituir família ou gerir bens e propriedades”. Estes factos são vistos com “preocupação” pelo comité das Nações Unidas, que esteve a avaliar como aplica Portugal a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
O comité sugere que o Estado português crie “sistemas de apoio” para que as pessoas com deficiência possam “tomar decisões” que permitam o exercício efectivo dos seus direitos. Diz que o país deve alterar os “regimes legais de tutela total e parcial” (a revisão dos regimes de interdição ou inabilitação chegou a ser considerada prioritária no ano passado, pelo Conselho de Ministros, mas não avançou). E que deve ainda “adoptar todas as medidas possíveis para assegurar que se respeita o direito ao consentimento livre, prévio e informado de tratamentos médicos”.
Os peritos pedem que seja também revista a legislação que permite que as pessoas “portadoras de anomalia psíquica” possam ser sujeitas a internamento compulsivo.
O relatório final do Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência relativo a Portugal foi divulgado nesta sexta-feira. Inclui recomendações que resultam de uma avaliação feita num período em que, explica-se, as “medidas de austeridade” e os cortes nos recursos disponíveis afectaram desde a educação das crianças com deficiência, até ao nível de vida das famílias.
Tudo isto num país onde, constata, as queixas que as pessoas com deficiência apresentam por discriminação — seja de que tipo for — são na sua maioria arquivadas.
Houve progressos
O comité de 18 peritos independentes avaliou, pela primeira vez, como cumpre o país as normas estabelecidas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ratificada por Portugal em 2009). A Convenção reafirma princípios universais como a dignidade, igualdade e não discriminação e define as obrigações gerais dos Governos relativas à integração das várias dimensões da deficiência nas suas políticas.
Foi um longo processo, esta avaliação. Em 2012, o Governo português fez chegar ao comité um relatório onde fazia um ponto de situação: quadro legal, programas específicos de apoio, respostas educativas.
Depois, o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos português e outras organizações da sociedade civil transmitiram os seus contributos aos peritos. No final do mês passado, uma delegação, que integrou a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, esteve no comité, em Genebra, a responder a questões colocadas. E, nesta sexta-feira, o relatório final foi divulgado no site das Nações Unidas.
O comité começa por congratular-se com “os progressos alcançados em alguns sectores relacionados com os direitos das pessoas com deficiência” em Portugal. A adopção de um programa nacional de saúde mental é uma das medidas que merece aplausos.
Os peritos também tomam nota dos esforços realizados pelo Estado “para mitigar o impacto das medidas de austeridade nas pessoas com deficiência”, mas constatam que deficientes que não tiveram hipótese de contar com o apoio da família acabaram “obrigados a viver em situação de indigência e pobreza extrema”.
Vida independente?
Assim, dizem, o país deve criar “serviços de apoio para a vida independente e instituições de acolhimento que respeitem os direitos das pessoas com deficiência, a sua vontade e as suas preferências”. E devem “ser criados subsídios monetários que permitam às pessoas com deficiência desempregadas e carentes de apoio familiar ter um nível de vida adequado”.
O comité pede ainda a Portugal que crie uma “estratégia nacional para a vida independente”. Sobre este ponto, recorde-se a descrição que o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos português fez chegar à ONU: não há, em Portugal, um quadro legal para a figura do serviço de assistente pessoal; o Estado português paga aproximadamente 950 euros mensais às instituições com as quais tem acordos de cooperação para as pessoas com deficiência serem institucionalizadas em lares residenciais, mas, “se as pessoas com deficiência quiserem viver sozinhas e necessitarem de acompanhamento permanente, têm direito a receber apenas 88,37 euros, o montante correspondente ao subsídio por assistência de 3.ª pessoa”; por falta de alternativas, “muitos adultos com deficiência vivem em lares de idosos”.
No capítulo da Educação, o comité lembra que a grande maioria dos estudantes com deficiência frequenta escolas regulares, o que é positivo. Mas que “há falta de apoios” a estes alunos e que houve “cortes nos recursos humanos e materiais” disponíveis para os mesmos, cortes esses que “comprometem o direito e a possibilidade de uma educação inclusiva e de qualidade”.
Os peritos criticam ainda as chamadas “escolas de referência para estudantes surdos, surdo-cegos, cegos e para estudantes com autismo”, considerando que “são uma forma de segregação”.
Os recursos disponíveis para estes alunos, concluem, devem aumentar.
No capítulo do trabalho sugere-se a revisão da legislação laboral. O comité está “preocupado com desigualdade e as condições de trabalho das pessoas com deficiência” que vivem em Portugal.
No final do mês, depois de responder às questões dos peritos, a secretária de Estado Ana Sofia Antunes prometeu “para os próximos meses” uma regulamentação do Código do Trabalho, “que promova a justiça no trabalho para as pessoas com deficiência” e anunciou um “Livro Branco” que fornecerá um retrato das pessoas com deficiência no país. Reconheceu ainda “a necessidade de introduzir melhorias no regime de protecção” destas pessoas, afirmando que “o mesmo se encontra em fase de revisão”.
Participação é fundamental
“Registamos com agrado as recomendações do comité ao Estado Português”, diz Paula Campos Pinto, do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos. De resto, elas tocam muitas das questões que tinham sido levantadas nos documentos que o observatório fez chegar ao comité, “nomeadamente a necessidade de abandonar uma visão assistencialista e medicalizada da deficiência e criar apoios para a vida independente, de cumprir e fazer cumprir a legislação existente em torno das acessibilidades, de dotar as escolas dos meios humanos e materiais fundamentais para promover a educação inclusiva e de regulamentar os apoios a prestar pelas universidades aos alunos com deficiência”.
Paula Campos Pinto sublinha ainda a necessidade referida pelo comité de o país "adoptar uma nova estratégia para a deficiência que promova a coordenação das políticas neste sector”. E a “importância da participação activa das pessoas com deficiência e suas organizações representativas” que “devem estar envolvidas no desenho, implementação e avaliação de todas as políticas que lhes dizem respeito”.
In Público | 22-04-2016
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